Festa, vida e morte nos reinados do Rosário
Festa, vida e morte nos Reinados do Rosário, de Joana Corrêa, é mergulho profundo no mundo dos Reinados e Congados das Minas Gerais guiado por estudo amoroso e detalhado da Festa de Nossa Senhora do Rosário na cidade do Serro.
Os Reinados e Congados conformam densa rede de interações na qual o lugar da festa do Serro se destaca com este trabalho que traz notável contribuição à densa bibliografia sobre o tema. Reinado e congado são termos que caminham juntos, mas iluminam sentidos distintos das celebrações do Rosário. Reinado se aplica à comunidade devocional como um todo abarcada pela Santa, ou de forma mais restrita aos festeiros – reis e rainhas coroados anualmente ou consagrados como perpétuos. Congado enfatiza a natureza cultural da festa, ou refere-se mais especificamente aos grupos que cantam e dançam sua devoção e circulam, para além de inserção direta na festa, no amplo mundo dos congadeiros. A festa do Serro abrange essa dupla dimensão e mais outras tantas. A cada ano, em impressionante continuidade desde a primeira metade do século XVIII, ela articula e rearticula grupos e camadas sociais distintas, a um só tempo afirma e subverte hierarquias étnico-raciais, ressignificando, e de certo modo sintetizando, dimensões históricas e socioculturais seculares do Alto Jequitinhonha.
Num calendário anual pontuado por festas de Santo as mais diversas, a festa do Rosário, nos diz Joana, é “sem dúvida a festa preferida dos serranos”. Envolve a sede, os distritos – com destaque para Milho Verde - e as comunidades rurais dos arredores que abrigam igrejas e capelas que remontam ao período colonial. Capaz de acender afetos que cruzam gerações e transcendem a finitude da vida; capaz de renovar memórias, sociabilidades e fé, o Rosário do Serro detém singular grandiosidade. A Irmandade, que zela pelo bom cumprimento do calendário festivo de orientação católica, foi fundada oficialmente em 1728. Com cuidado e orgulho, irmãos e irmãs guardam o belíssimo documento que o atesta. Essa dimensão católica do culto à Santa, que Igreja e Irmandade cuidam de reafirmar, se entrecruza com a marcante presença da população negra, que traz consigo a memória viva de tradições oriundas dos africanos e afrodescendentes, negros forros e escravizados do tempo do garimpo nas cabeceiras do rio Jequitinhonha.
Do garimpo só se fala no passado, nos diz a autora. Porém as almas, os mortos, as rezas e os cantos vissungos – elementos de cosmologias distintas – se sobrepõem e se entrecruzam no tempo e no espaço excepcionais instaurados pela festa. A fé e a dedicação aos ritos católicos que se sobressaem não deixam de associar-se rotineiramente a benzeções e ao conhecimento e uso de raízes e plantas associadas a curas e proteção espiritual. Esses elementos diversos, acerca dos quais a autora nos traz vívidos relatos, emergem e se tensionam abrigados sob a devoção feita de entrega e fé à Santa. Sua imagem sagrada desce do altar da Igreja – lá no topo do morro do bairro do Rosário – durante a festa e, plena de aura, como que instaura a presença quase tangível da Senhora do Rosário. Ela circula entre os devotos pelas ruas e ladeiras tortuosas da cidade, entre o mundo dos mortais que a protegem, veneram e acompanham. Ao mesmo tempo em que hierarquias sociais e étnico-raciais se visibilizam, a Santa a todos nivela com sua natureza a um só tempo divina e tão próxima do sofrimento e acolhimento humanos da mãe do Deus feito homem. Mito e rito se abrem para a complexidade histórica e sociológica da trama de relações anualmente tecidas e cheias de disputas, negociações, acomodações e tensões. Joana Corrêa lança luz compreensiva e lúcida sobre a dinâmica e a densidade das tantas experiências sociais entrelaçadas por esse ativo mundo social envolto pela devoção à Santa cuja celebração a todos engaja.
Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti
Corrêa, Joana Ortigão, 2024
PREVISÃO DE ENTREGA PARA 10 DE OUTUBRO DE 2024.